sábado, abril 01, 2006

Uma catástrofe é uma série de pequenos erros (autor desconhecido)

Calma, meus caros, nada de grave ocorreu. Ontem aconteceu um baile de despedida dos 2003, algo como uma formatura, pero no mucho. Um evento festivo, digamos, de encerramento de uma fase de curso. Na verdade eles não têm mais aulas aqui, alguns ainda têm que fazer umas provas, mas no geral eles estão livres.

Festa de muita pompa e ostentação, como é muito caro aos franchucos; na "Opéra de Paris", lugar daqueles chiques e extremamente quentes (no sentido real, de temperatura mesmo) com cara de filme sobre a corte do Luis XIV. Eu, pobre mortal polytechnicien, achei que seria de bom grado portar minhas lentes de contato. Lêdo e ivo engano, considerando que eu deveria ficar com elas por umas 10 horas e que no meio da noite eu já não enxergava mais nada.

Como as coisas aqui acabam relativamente cedo, lá pelas 3 e pouco decidimos voltar pra escola. Pequeno problema: o trem não costuma funcionar durante a madrugada. Parte do grupo se separou, 3 embarcaram num taxi encontrado meio por milagre. Entre a possibilidade de esperar por horas por um outro taxi ou andar até o metrô e esperar que ele abrisse, fiquei com a segunda, claro. Nos dividimos outra vez e segui com dois chilenos e um marroquino.

É preciso dizer, no entanto, que o traje dos alunos é o famigerado GU, o nosso uniforme militar, mesmo para os estrangeiros (e portanto não-militares por definição). Durante a festa fica razoavelmente simpático aquele amontoado de botões dourados, tirando que encontrar alguém se torna uma tarefa bem mais complexa (ainda mais sem enxergar à distância), mas a grande graça vem do trajeto até o metrô.

Imagine, meu caro leitor, que você é um parisiense pobre, sem emprego, com raiva do sistema e participando de diversas manifestações sobre o Contrato do Primeiro Emprego (é assim em português? Bom, CPE). E de repente, no meio da madrugada, você encontra uma meia dúzia de quatro polytechniciens, estrangeiros, andando na rua com seu uniforme ridículo.

Alguns riam, outros apontavam, um cidadão até pediu para tirar uma foto nossa. (Comentário pra quando editar O Blog em livro: sim, era eu naquela famosa foto dos polytechniciens sob a chuva antes dos protestos, mas não, nós só estavamos voltando pra casa. E aquela declaração contra o Chirac também não foi nossa.).

Atravessamos uma rua e ouvimos, de um ponto de ônibus, um grupo de jovens (com tradução livre do espanhol, nas falas do chileno):

Allons enfants de la patrie, le jour de gloire est arrivé !
Contre nous de la tyrannie
-David, eles estão seguindo a gente
L’étendard sanglant s’est levé, (bis)
-Não, acho que não.
Entendez-vous dans nos campagnes
-Olha bem pra trás.
Mugir ces féroces soldats
-Não, aqueles eram negros, eles continuam l
á no ponto.
Ils viennent jusque dans vos bras, égorgez vos fils, vos compagnes!
-Desculpa, é o instinto paulistano, de vez em quando a gente se engana. Em todo caso, vamos virar à direita. Se eu fosse carioca, não errava jamais.

Não creio que eles tenham chegado até o “Aux armes, citoyens”. Entretanto, na tal rua à direita, o marroquino que estava conosco parou pra comer um kebab. Ambiente sinistro, pessoas mal encaradas, e o magrebino achando tudo aquilo normal. Os sudacas, como de costume, se cagando. Um francês puxa assunto comigo e com o Sergio. Assunto daqueles delicadíssimos, ‘Você pensa que a França é um país de loucos? Que aqui a gente luta por nada?'. Enquanto eu escolhia bem minhas palavras, vi que um pessoal no fundo revirava um cesto de lixo e pegava umas garrafas. “Brasileiro é morto em Paris a garrafadas por usar uniforme de escola. ‘Ele odiava militares’, diz a familia”.

O ponto central é que o brasileiro, por mais fodido que esteja, sempre acha que num mágico golpe de sorte tudo vai melhorar, e por outro lado aquele que disfruta do bom e do melhor reclama que as coisas não estão indo lá muito bem. Aqui, a sua nota de matemática do colegial basicament define se você vai ser rico (e portanto feliz, no raciocínio raso) e ter um cargo no governo ou se vai ser mais um pobre coitado desempregado. É fatalista demais pro meu gosto. Pra piorar, eu estou do lado dos que venceram, dos que vão dominar o pais, da elite, do povo mesquinho, arrogante e burguês. O fato de ter entrado pela porta dos fundos não é um problema tão grande, ao menos aos olhos de quem está fora daqui.

A conversa se acalmou, chegou um amigo do francês que era neto de chilenos, andamos um pouco mais sob a chuva e logo já eram mais de cinco da manhã e pudemos entrar no metrô.

Não sei como terminar o texto. O fato é que somos burguesinhos idiotas que vamos ter mais oportunidades que a grande massa francesa, e pra piorar são eles mesmos que estão pagando por isso. Obviamente não é pela nossa capacidade, um francês de nivel médio que bomba o exame de admissão da X sabe trocentas vezes mais matemática e física que eu, tampouco pela contribuição cultural. Eles querem raízes no exterior, querem alguém que defenda essa elite que dança valsa na opéra. E nós aceitamos o acordo, não posso negar.

Formez vos bataillons!
Marchons, marchons
Qu'un sang impur
abreuve nos sillons!

Um comentário:

Débora Maria disse...

Acho que agora entendo a expressao "sem comentários". Se vc for ver, o vestibular no Brasil também determina as chances da pessoa ser de classe média alta ou baixa... Entendo que os estudantes estejam protestando, mas por que eles estao quebrando as escolas? Como se estivessem num clip do The Wall? Nao sao eles mesmos que vao pagar?